Minha carta de alforria
É fruto da escravidão
Nunca fui um que gemia
Sob o tronco e o ferrão
Mas conheço a agonia
De quem teve essa aflição.
Todos os meus antepassados
Foram senhores de terras
Que partiram carregados
Par o alto de outras serras
Para mim deixaram gados
E prazer em fazer guerras.
Fui também escravocrata
Nunca quis negros livrar
Muitas vezes fui à mata
Ver escravo trabalhar
Sem comida em sua lata
E sem poder descansar.
Nunca fui um destemido
Ou sequer bom cabecel
Por escravos fui temido
A todos neguei farnel
E se via um escondido
Castigava com o cinzel.
Nunca fui homem valente
Minha força era um fuzil
Um chicote bem potente
E cachaça no cantil
Procurando o inocente
Que o capataz não viu.
Muitas vezes castiguei
Sem haver merecimento
Às negrinhas violei
Às quais dei só sofrimento
Se alguma vez chorei
Não foi arrependimento.
Aos cativos obriguei
Produzir em quantidade
Muito lucro eu desejei
Sem ter dó nem piedade
A nenhum eu perdoei
Chegando à senilidade.
Só depois de muito tempo
Aprendi raciocinar
Que o negro sem alento
Ao senhor pode matar
E também sem alimento
Não consegue trabalhar.
Fui assim me corrigindo
Com o negro aprendendo
Permiti negro sorrindo
Minorei seu sofrimento
E se via algum fugindo
Punha no esquecimento.
Muitas vezes claudiquei
Nas cobranças de patrão
Outras vezes enganei
Imitando um valentão
Isso tudo que eu passei
Ajudou no meu perdão.
Hoje estou alforriado
Desse meu grande pesar
Muitas vezes perdoado
Por alguém que não dei lar
Esse meu grande pecado
Nunca precisei pagar.
Para ser alforriado
Fiz também minha lição
Pus o orgulho de lado
E abri meu coração
Tudo que a mim foi dado
Recebi sem discussão
E depois de confessar
Todas as minhas frustrações
Sei que posso almejar
Não querer mais discussões
E assim quando eu falar
Não vou dar más instruções.
Não estou amargurado
Pelas dores que eu causei
Dessa dor eu fui curado
Por alguém que eu machuquei
Pra não me ver humilhado
Agradece o que não dei.
Fui assim reencontrado
Por aqueles que perdi
Tive a sorte do meu lado
Ao rever o que não vi
Sei que fui desmiolado
Mas ser gente eu aprendi.
Essa é a história minha
Muitas vezes recontada
Para alguém que a mim vinha
Cada vez valorizada
Uma vez que eu nada tinha
Que a fizesse declamada.
Por Renato de Souza Lima
renatosouza1947@gmail.com
Data de criação: 26/02/2008